Apresentação
Idade Média: entre trevas e luzes...
Sobre a chamada Idade Média muitas coisas foram ditas e, também, mal ditas. O período das “trevas”, das bruxas, dos dragões, das cruzadas, das pestes, enfim, a longa noite de escuridão e males tão bem representada e explorada nos cinemas, livros de magia, esoterismo, etc. Sem dúvida alguma, estas visões, mais que preconceituosas, constituem uma prova concreta da necessidade de se entender o que de fato se chama medievo. O que queremos dizer quando afirmamos indignados, por exemplo: “ que horror! Regressamos a Idade média!” ?
Está claro que a denominação “Idade Média” comporta uma valoração explicitamente negativa. Não é de se estranhar que esta definição, injustamente aplicada a um período de quase dez séculos (476 d. C a 1453 d.C), nasceu exatamente numa época que se denominou Renascimento e, posteriormente, Luzes ou Iluminismo. Giovanni Andréa de Bussi (1469 d.C) foi um dos que caracterizaram o período que vai do fim do Império romano até o seu tempo de media tempestas. No geral, esta visão negativa, consagrada no século XVII, esteve marcada por um desprezo geral pelo passado. O latim, língua oficial da Igreja, a literatura, a arte gótica e a escolástica, com suas reflexões sobre Deus, a fé e o mundo, foram desprezados como inferiores frente ao ideal greco-romano. Dito de outro modo, nada parecia possuir valor aos olhos da nova época que se apresentava.
Um exemplo marcante de crítica contra o pensamento teológico e filosófico medievais encontramos em Martino Lutero (1483 d.C) que via na aproximação do pensamento cristão ao paganismo (particularmente das filosofias de Platão e Aristóteles), isto é, no esforço dos pensadores medievais em demonstrar, com razões, a existência de Deus, um desvio dos verdadeiros princípios do cristianismo, principalmente, da valorização da fé sobrenatural e, consequentemente, algo que deveria ser desprezado como inutilidade especulativa e aversão as Escrituras. Outros pensadores como Erasmo de Roterdã (1466 d.C) também contribuíram para o fortalecimento desta visão negativa da chamada “Idade Média”. Para Erasmo, o medievo era símbolo de degradação moral, religiosa, política, literária e artística. Nesta mesma perspectiva, filósofos como Diderot, Condillac e Voltaire também se posicionaram contrários à filosofia desenvolvida até então. Aqui nos interessa ressaltar, somente, a raiz da expressão “Idade Média” como fruto de um julgamento, humanista-renascentista, frente a uma visão de mundo (weltanchaung) e, portanto, a um modo próprio de entender o real e o conhecimento. Visão de mundo, erroneamente entendida como cristã, dado que reduzir a “Idade Média” ao pensamento ocidental-cristão é um erro absurdo. Não podemos esquecer dos conhecimentos provenientes da China, das reflexões islâmicas e judaicas. Com isso queremos dizer que a chamada Filosofia cristã é somente um recorte, efetivamente o mais vasto com conseqüências políticas, éticas e filosóficas para o Ocidente, mas não o único. Para citar somente um exemplo, basta lembrarmos que foi graças aos árabes que o Ocidente (medieval e moderno) conheceu obras fundamentais de pensadores como Aristóteles. Um dado de suma importância para qualquer análise das conquistas e realizações desenvolvidas na “Idade Média” é saber que o período medieval, além da cultura ocidental latina estava formado pelo Oriente grego (Bizâncio), Asiático (China e Índia) e muçulmano. Neste sentido, além das escolas de Paris que no século XII converteram esta cidade no centro do mundo civilizado, a China introduziu o papel, a pólvora e a bússola. Três invenções determinantes na história humana. Os árabes (Al-andalus) transformaram, no século X, a Península Ibérica na civilização mais avançada do Ocidente. A criação de instrumentos de navegação como as tábuas astronômicas baseadas em modelos geométricos ptolomáicos, as teorias de Azarquiel no século XI foram indispensáveis para o avanço na precessão dos equinócios; o astrolábio náutico criado por Ibrahim Ibn Sahli em 1067 foram instrumentos que não só revolucionaram as teorias científicas, através da descoberta de novos continentes e civilizações, mas contribuíram para mudanças de paradigmas sociais, culturais e filosóficos destruindo assim a velha imagem da “Idade Média” como estéril (Cf. LIBERA, 1999).
Os grandes avanços na lógica possibilitaram em 1300 resolver clássicos problemas da Física e da Filosofia. A matematização da física e do raciocínio secundum imaginationem possibilitaram no século XIV a passagem do “possível físico” ao “possível lógico”. Outro dado de suma relevância diz respeito às discussões travadas em Oxford e Paris entre os Realistas e Nominalistas medievais que impulsionaram novas descobertas no campo da óptica e da cinemática preparando o caminho para Galileu e Kepler. Por essa razão, P. Duhem, contrariando o desgastado e sempre usual argumento de que a ciência na Idade Média estava controlada pela religião, afirma que esses dois campos não eram incompatíveis e lembra que Copérnico e Galileu foram discípulos de Jean Buridan e Nicolas D’oresme, mestres da escolástica parisiense[1].
Feita as devidas ressalvas e dado o caráter introdutório da nossa análise, podemos perguntar o que significa, portanto, Filosofia cristã? Responder esta questão implica adentramos um pouco na história do cristianismo e, principalmente, dos argumentos utilizados por seus representantes durante os primeiros séculos da nossa era. Segundo W. Jaeger, no seu livro Cristianismo primitivo e paidéia grega[2], nos primeiros dois séculos, houve uma profunda influencia da civilização grega no cristianismo. De modo que, a cristianização do mundo pagão, não se deu de modo unilateral. Dito de outro modo, a cristianização implicou numa helenização do cristianismo. Recorda-nos o historiador que o cristianismo era um movimento de judeus e que os judeus estavam helenizados nos tempos de Paulo[3]. Com isso, já podemos vislumbrar o diálogo estabelecido entre o pensamento cristão e a cultura e filosofia gregas. Os christianoi não somente foram capazes de absorver os fundamentos teóricos dos gregos, mas dominaram sua língua, seu pensamento e sua lógica. Questões do tipo: como alcançar a tranqüilidade do ânimo? Qual o caminho para a vida feliz? O que é a sabedoria? Como superar os vícios? São questionamentos dos quais se ocuparam os pensadores medievais cristãos.
É importante lembrar que o cristianismo se fortaleceu, como religião e pensamento, graças a imperadores como Constantino, Cláudio (o Gótico) e Diocleciano, além de senadores, soldados e filósofos pagãos como Mario Vitorino. De modo que é necessário entender, por um lado, o apoderamento teórico da filosofia grega por parte dos chamados padres apologistas e, por outro, o papel político decisivo que o cristianismo desempenhou nos primeiros séculos. É importante ter claro que depois da oficialização do cristianismo com religião do império (397 d.C. durante o Concílio de Cartago), como bem observou A.H.M Jones, o cristianismo atraia todo tipo de homem: de sábios que, com resistência, assumiam a nova fé do imperador à bárbaros que buscavam proteção na nova religião[4]. Os primeiros defensores de um cristianismo como forma de pensamento teoricamente consistente, do ponto de vista filosófico e teológico, foram homens que buscaram responder, associando elementos estóicos, peripatéticos, pitagóricos e platônicos, questões próprias da época como Deus, mundo, felicidade, justiça etc. Poderíamos destacar como representante maior dos chamados apologistas Justino o mártir. Justino não somente defendeu a fé cristã em inúmeras cartas enviadas a imperadores como Adriano, Antonio Pio e Marco Aurélio, mas buscou justificar, através do diálogo com o paganismo, a raízes filosóficas de conceitos tipicamente cristãos como Eucaristia e Encarnação. Vale ressaltar que o crescimento do cristianismo como forma de vida, não se deu de modo pacífico. Muitos dos que aderiram a “nova fé” foram perseguidos e lançados aos leões, no entanto, a idéia do cristianismo como religião universal destinada, indistintamente, a todas as raças, foi uma algo que atraiu adeptos de inúmeros credos e filosofias.
Mas quando surge de fato o que chamamos de Filosofia Medieval? Essa é uma questão de difícil resposta. Para muitos, o medievo nasce exatamente com a conversão de Constantino (312 d.C) ao cristianismo. Outros apontam para a inauguração de Constantinopla (330 d.C); alguns sugerem que o medievo só tem inicio com a morte de Justiniano (565 d.C) e outros apontam a coroação de Carlos Magno (800 d.C) como ponto decisivo. Ou seja, não há consenso nem sobre o inicio nem sobre o fim da chamada Idade média. Para nosso estudo, tomaremos como marco o fechamento da academia platônica de Atenas em 529 d.C decretado por Justiniano. Poderíamos dividir, do ponto de vista da Filosofia, o medievo em dois grandes blocos: a patrística e a escolástica. A patrística se refere ao pensamento desenvolvido pelos “padres da Igreja” que tem como característica os profundos traços com a tradição helênica. A Escolástica foi um período marcado pelas grandes escolas e universidades medievais. Sua característica maior foi a tentativa de resolução das grandes questões como Deus, o Mal, a Liberdade, à luz da unidade entre razão e fé.
[1] Cf. DUHEM,P. Hélène: un savant français: Pierre Duhem, Paris: Plon. 1936
[2] JAEGER, W. Early Christianity and Greek Paideia, trad. Elsa Cecilia Frost, Mexico: Fondo de Cultura Económica, 1961.
[3] Ibidem, p. 10
[4] Sobre o tema da conversão ver: JONES, A.H.M, El trasfondo social de la lucha entre el paganismo y el cristianismo In: MOMIGLIANO A. et Alli, El conflicto entre el paganismo y el cristianismo en el siglo IV, tradução espanhola de Marta H. Iñiguez, Madrid: Alianza, 1963, p. 31